quarta-feira, dezembro 19

Só isso que eu queria dizer

Naquele dia, se você tivesse parado o carro e saísse pra falar comigo, eu ia dizer que já sabia que a gente ia se afastar porque toda mudança é o prenúncio de uma mudança ainda maior e você se mudou pra uma Juazeiro muito ao norte pra quem já morou em frente a mim. Eu não ia falar demais porque a Rua Padre Cícero não tem lugar pra estacionar, então é de se entender que você tenha só buzinado e seguido direto porque a nossa finada amizade não vale a multa por parar em local inapropriado, não vale mais nem o desconforto de fingir que interessa saber como vai, tudo bem e tu, eu também, e a faculdade, já terminando, pois é, pois é, mas eu não ia falar muito, eu ia só querer saber se foi alguma coisa que eu disse, ou fiz, ou esqueci de fazer, foi porque eu prometi ajudar na mudança e nem apareci pra colocar sequer uma gaveta em cima da caçamba do carro, foi por isso, eu ia perguntar, ou foi alguma coisa que te falaram, algum segredo meu que te deixou com raiva, é porque eu fingia ser fanático pelo Vasco quando, na verdade, eu só acompanho a final do campeonato porque eu não tenho muito tempo e ser torcedor de verdade demanda disposição a ficar averiguando o placar dos outros times e eu não presto pra isso. Então se foi por causa do Vasco, me perdoe. Mas você só buzinou, eu olhei pra saber quem era, o vidro é fumê e eu não reconheci você com o braço levantado emulando um sinal de tô só passando e não vai dar tempo parar. Eu quis gritar ei. Eu quis gritar um ano inteiro de coisas pra te contar. Eu quis gritar que eu também mudei de casa, reprovei horrores de cadeiras na universidade, arrumei um emprego e me demiti quando vi que tava trabalhando pra a maior filha da puta. Você ia rir de mim, eu ia rir lembrando o tanto que eu me fodi esse ano, a gente ia rir e isso ia bastar pra eu saber que vai tudo bem na sua casa, no seu trabalho, nos estudos e com a namorada. E a gente fica assim, juntando as coisas por dizer até que, num feriado santo, os dois visitem aquelas casas que têm seus portões de frente um pro outro, ali a dez passos, mas nenhum de nós dois vê mais sentido em atravessar a rua. Então você vai levantar o braço, dar aquele tchauzinho-continência e eu vou gritar ei. Você não vai me chamar pra ser padrinho do seu filho, eu não vou lhe contar meus planos para 2013, você vai entrar na casa das suas tias, eu vou entrar na casa da minha avó, seu carro vai seguir junto com os outros carros na Padre Cícero de tarde e eu vou ficar pensando em um jeito de fazê-lo saber que eu gosto muito de você e lhe desejo toda a sorte do mundo.

sábado, novembro 17

Uma coisa ou outra


Meu bem, me dizes, e eu curvo a cabeça pra encontrar teu ombro ou talvez pra reverenciar a glória do teu corpo finalmente presente como era no princípio agora e sempre amém. É complicado, me dizes, e eu te escuto explicar pausadamente os quandos e porquês e eu então procuro dentro do bolso a calma e o tempo que me pedes, mas que hoje eu não tenho pra te dar. Eu tenho outro, me dizes, e eu não digo nada porque eu sempre soube das outras coisas entre mim e ti. Dia desses a gente se vê, me dizes, e eu sei que é pra nunca mais.

segunda-feira, setembro 17

Vir

Tua chegada aciona um por um dos meus alarmes, põe em risco os cristais na prateleira, revigora uma vontade, ressuscita uma mágoa, traz de volta um sorriso que por muito tempo escondi por dentro da boca, do estômago. Tua chegada é metade paz e metade desassossego e teu abraço de arame farpado me lembra que vens perigo, mas tua chegada demora mais tempo do que eu estou disposto a esperar.

terça-feira, julho 24

Tanto quase


De tanto quase te ter, meus braços ensaiaram uma volta plena de tuas tardias escolhas, minhas mãos se prepararam para volverem plenos do teu sim, do teu agora, do teu já que cai maduro do pé. De tanto quase te beijar, minha boca se preparou para retornar cheia com a fruta da época. De tanto quase ser feliz, desisti de esperar pela colheita, fechei as mãos e voltei sozinho, como sempre soube que voltaria.

terça-feira, junho 19

Chega aqui

Eu sei que é junho quando a flor da cana-de-açúcar cobre o canavial de Barbalha com um branco que se estende imenso tapete à espera do pôr-do-sol e das garças que precisam dormir depois de um dia difícil. Eu sei que é teu o mês  porque esse vento só sopra agora e ele traz duas coisas: o cheiro do doce da rapadura que sai do engenho e você. Eu sei que é fim de chuva, época de vento zuadando e começo de festa porque  meu coração zabumba quando sabe que vai te ver e estendo os braços tal qual  as flores no canavial se abrindo para os pássaros. Eu sei que é tua a chegada porque quando vens ouço as folhas fastando, a plantação estalando, tua chinela arrastando e teu sopro em minha nuca.

segunda-feira, abril 30

You and me




How to trust your feelings when they just disappear like that?

Batizei teu umbigo com um desses nomes bem bonitos de país e nele fiz meu lar, no abrigo dos teus olhos fiz meu ninho, na calma do teu colo ancorei meus medos e na pátria dos teus braços me fiz cidadão. Andei nos teus terrenos com todos os meus pés e dedos e dentes e a ponta do meu nariz, pra agora desertar do teu ombro de cais e desaprender teus dialetos. O adeus foi dito no papel em cima da mesa de centro onde se leu “não dá mais, já fiz tudo que pude”.

terça-feira, março 6

Sinal fechado

- Alice!
Ele estava poucos metros à minha frente quando gritou por ela, que quase subia a calçada, mas parou quando ouviu aquela voz que parecia a dele, só podia ser a dele, chamando-a numa faixa de pedestres na São Pedro de tarde. Com um pé ainda no asfalto, ela se manteve paralisada no meio do caos juazeirense como se alguém tivesse gritado “estátua!” e em vez de subir a via, voltou um pé e se virou. Tinha dor e lágrimas nos olhos. Aquela voz trouxe um peso aos seus ombros que só o passado sabe trazer.
- Oi, Léo!
Ela então soltou um sorriso daqueles que a gente solta quando uma coisa qualquer que a gente vive pensando de repente aparece na frente da gente, que já não sabe como reagir a tamanha coincidência. Se ensaiou o que fazer na hora dessa emergência, deve ter dado um branco, pois ela não sabia se ia ou ficava, se falava ou calava, se corria ou dissolvia no ar.
Até então eu não havia visto o rosto dele, um tipão musculoso, ombros que eu invejo e jeito charmoso de caminhar. Alice, cara de estudante, pele de quem não sabe o que é sol, menininha delicada e fofurinha, continuou parada, segurando a alça da bolsa de lado com as duas mãos, o corpo jogado sobre uma perna, mordendo o lábio e visivelmente desconfortável. A essa altura, ainda caminhávamos próximos, eu e Léo, de uma forma que deu pra acompanhar melhor a novela.
- Como é que você tá? Nunca mais te vi. – Ele falou, enquanto caminhava tranquilo na direção dela. Foi com a mão direita estendida, num ritual típico de qualquer um, mas numa inquietação própria de quem já se viu muito um dia. Alice ignorou a mão que esperava um aperto da dela. Deu dois passos em direção a ele e o abraçou segurando-o pelo pescoço com os dois braços. Um abraço rápido, para o qual ela precisou ficar na ponta dos pés para poder alcançá-lo, e ele ainda teve de se abaixar um pouco. Quando ele ia responder, ela o soltou – breve, seca, grossa. A dor, que se equilibrava sobre uma corda fina de seda e dúvidas, caiu ali entre as linhas brancas para segurança de pedestres e amantes. O farol ainda estava vermelho, mas a vida passava por cima deles dois, que andavam a pé numa estrada cheia de poeira e pedras, com tantos espinhos e buracos. A cidade seguia e eles cegos se perseguiam pelos sinais fechados, curvas do passado, esquinas escuras e ruas sujas dos esgotos do ontem que foi nós, mas hoje fede e a prefeitura não manda limpar. Nesse meio tempo, passei deles e pude ver o rosto de Léo. Ele sorria um sorriso gato-de-Alice, lua crescente, diferente dos olhos dela, agora minguados. Léo sorriu e confirmou as suspeitas, negou as chances. Por isso ela não quis o aperto de mão, não quis afago nem muito toque. O abraçou porque relembraria daquilo por alguns dias e morreria de arrependimento se não o tivesse feito.
Quando o largou, duas lágrimas rolavam por sua face e ela já não tinha condições de olhar para ele. Usou o pulso para se enxugar, virou as costas e saiu sem dizer palavra alguma. Atordoada que estava, passou por mim e bateu no meu ombro, eu que estava parado, virado pra eles, sem perder um só detalhe.
- Desculpa, moço. – e seguiu.
Volta e meia o amor tropeça em mim, pisa no meu pé, pede perdão por ter perturbado.
- Mas não foi nada, que é isso!
Léo me olhou de relance, mas não desconfiou que eu sei de tudo e continuou a andar tranquilo como antes. Não parecia querer chamá-la para uma conversa mais calma, talvez tentar uma reconciliação, nem muito menos queria consolá-la. Quase fui nele:
- Meu filho, o que você quer da vida?
A vida, que não quer nada dele, seguiu. E ele seguiu junto. Alice, lá na frente, ainda chorava. Por um bom motivo, que eu infelizmente não sei, não quis esperar por ele. O sinal abriu e eu tratei de correr porque meu plano de saúde não cobre voyeurismo de romance alheio.

A girar, maravilha

Achei que nunca mais fosse voar daquele jeito. Duvidei que me fosse presenteado mais uma vez o dom de ser transportado delicadamente de um plano a outro feito um besouro que nem sente as asas baterem e sai por aí até se dar conta de que chão e céu não têm a mínima diferença - ambos estão longe, muito longe. Jurei que não dava mais pra voar como fiz naquela noite, numa esquina escura, lugar menos provável, que nem ao menos era uma pista de pouso. Mas me foi concedida licença pra flutuar, contra todas as possibilidades, alçar voo, contra todos os planos, levitar, contra todos os projetos, suspender. Num beijo, desmanchar no ar.